Lei do Superendividamento: como usar a seu favor neste momento de recorde de inadimplência
A definição tem muitos pontos importantes que merecem atenção especial. Mas calma! Iremos analisar cada um deles com cuidado.
De início, percebe-se que a Lei determina que o superendividamento somente ocorre para pessoas físicas ou naturais, e não para pessoas jurídicas. Sendo assim, ao analisarmos a aplicação da Lei do Superendividamento, devemos nos atentar à verificação dos sujeitos, se são pessoas naturais ou jurídicas, já que somente poderão ser considerados superendividadas as pessoas naturais.
Porém, cabe lembrar que isso não significa que as normas do Direito do Consumidor somente se aplicam às pessoas naturais, já que também podem ser aplicadas para proteção de pessoas jurídicas.
Além disso, pela definição trazida pela Lei do Superendividamento, há de se notar que somente serão protegidas pelas novas normas aquelas pessoas que tiverem contraído suas dívidas de boa-fé.
Ou seja, se, no caso concreto, as dívidas forem contraídas já com a intenção de não quitá-las, o devedor não será considerado superendividado para os fins da lei, já que agiu de má-fé.
A definição também afirma que o superendividado consiste naquele que está impossibilitado de quitar suas dívidas de consumo. Ou seja, dívidas oriundas da aquisição de produtos ou serviços de fornecedores pelo consumidor para satisfazer suas necessidades ou desejos pessoais.
Tais dívidas de consumo, por sua vez, abrangem as prestações que sejam exigíveis pelo fornecedor e que sejam vincendas, ou seja, que ainda estejam a vencer.
Além disso, é importante mencionar que a lei não se aplica às dívidas decorrentes da aquisição ou contratação de produtos ou serviços de luxo que tenham alto valor.
Por fim, com base na definição trazida pela Lei do Superendividamento, podemos concluir que o sujeito considerado superendividado é aquele que se encontra impossibilitado de pagar suas dívidas de consumo exigíveis e vincendas sem comprometer o seu mínimo existencial.
Em outras palavras, o devedor pode até ter patrimônio suficiente para quitar suas dívidas de consumo, mas se isso significar o comprometimento de seu mínimo existencial, o devedor será considerado superendividado. Mas o que é mínimo existencial?
Mínimo existencial consiste no conjunto de direitos básicos ou de direitos fundamentais que garante à pessoa natural uma vida digna, como o direito à alimentação, ao vestuário, à saúde e à moradia, por exemplo.
Ou seja, se tratam de direitos que não podem ser sacrificados para o pagamento de dívidas de consumo, sob pena de prejudicar a própria dignidade do devedor.
Ainda ficou difícil de entender o conceito de superendividamento? Caso positivo, não se preocupe, ilustraremos essa importante definição da Lei do Superendividamento para facilitar sua compreensão.
Para começar, obviamente ela preenche o requisito de ser pessoa natural. Além disso, contraiu uma série de dívidas de consumo exigíveis e vencendas, oriundas de suas muitas compras com seus cartões de crédito de peças de vestuário.
O que muda com a Lei do Superendividamento?
Definido quem é considerado superendividado pela nova lei, passamos a abordar quais foram as principais mudanças trazidas por essa ao Código de Defesa do Consumidor e à defesa desse sujeito de direito.
De início, a Lei do Superendividamento determina que o Poder Público terá como dever a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento do superendividamento, seja por meio judicial, seja por meio extrajudicial.
Além disso, a lei traz como novo instrumento a ser usado pelo Poder Público a instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos originados pelo superendividamento.
Tais alterações têm como objetivo possibilitar condições mais justas de negociação e recuperação para os consumidores de crédito, na medida em que buscam evitar acordos feitos pelas instituições financeiras que somente piorem o quadro de superendividamento dos consumidores.
Nesse sentido, a nova lei tem como uma de suas finalidades proporcionar ao consumidor a possibilidade de recuperar-se economicamente, além de agir sobre a prevenção do superendividamento.
Tais ações são feitas por meio da proibição de práticas abusivas de publicidade como propagandas de empréstimos “sem consulta ao SPC”, já que passa a ser dever expresso das empresas que concedem crédito a avaliação da situação financeira dos consumidores antes da contratação.
Com isso, os bancos não poderão ocultar aos consumidores os riscos da contratação dos empréstimos, por exemplo.
Ou seja, as instituições financeiras passam a ser obrigadas a informar os custos totais do crédito, envolvendo os juros, tarifas, taxas e encargos sobre atraso, com a finalidade de prevenir situações de superendividamento.
Portanto, ficam vedadas práticas de assédio ou pressão aos clientes, no sentido de veicular propagandas abusivas com estratégias de sedução aos consumidores, envolvendo, por exemplo, prêmios pela contratação de crédito, especialmente quando se tratam de pessoas idosas, analfabetas ou vulneráveis.
A Lei do Superendividamento impõe como direitos básicos do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável e a prevenção das situações de superendividamento, além da revisão e repactuação de dívidas de forma justa e equilibrada, evitando-se a perpetuação dessa dívida em um verdadeiro efeito bola de neve.
Tais direitos básicos envolvem, também, o direito à educação financeira, estimulando o consumo consciente.
Todas essas mudanças levam à proteção do mínimo existencial dos consumidores, que também é acrescido à relação de direitos básicos do consumidor pela Lei do Superendividamento.
Para tanto, é fundamental que os fornecedores de crédito observem o direito à informação do consumidor, evitando práticas como as mostradas no filme Delírios de Consumo de Becky Bloom, quando Rebecca compra uma linda peça de caxemira que a leva à felicidade, até que descobre, nas minúsculas letras da etiqueta, que o vestuário era feito por somente 5% do material.
Como a nova lei aborda a prevenção ao superendividamento?
A Lei do Superendividamento, além de acrescentar a prevenção ao superendividamento como princípio para as relações de consumo, também trouxe regras expressas que geram obrigações aos fornecedores, especialmente relacionadas às informações passadas aos consumidores quando da contratação de crédito.
Tais regras podem ser encontradas no Capítulo VI-A do Título I do Código de Defesa do Consumidor, acrescentado pela Lei do Superendividamento, dos artigos 54-A a 54-G do CDC.
De acordo com a nova lei, quando houver fornecimento de crédito e nas vendas a prazo, o fornecedor deverá indicar:
1) o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem;
2) a taxa efetiva mensal de juros;
3) a taxa de mora e o total dos encargos previstos para o atraso no pagamento;
4) o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deverá ser de no mínimo dois dias;
5) o nome e o endereço físico e eletrônico do fornecedor e;
6) o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito.
Todas essas informações deverão ser apresentadas de forma clara, descomplicada e resumida no contrato, na fatura ou no instrumento apartado, com fácil acesso pelos consumidores.
Além disso, a Lei do Superendividamento traz proibições a determinadas práticas pelos fornecedores.
Nesse sentido, a primeira prática proibida, como já dito, é ofertar crédito ao consumidor afirmando que a operação poderá ser efetivada sem a consulta aos serviços de proteção ao crédito e sem avaliação da situação financeira do consumidor.
A razão para tal proibição é clara: evitar que o consumidor já endividado entre em uma situação grave de superendividamento.
A segunda proibição se refere à prática de ocultar ou dificultar a compreensão sobre os riscos e os ônus da contratação do crédito.
Tal vedação é importante para garantir ao consumidor o direito à informação clara e adequada, evitando que tenha futuros problemas decorrentes de seus contratos de consumo.
A terceira prática vedada é o assédio ou a pressão aos consumidores para contratar crédito, principalmente se se estiver diante de pessoas idosas, analfabetas, doentes ou em estado de vulnerabilidade.
Tal proibição também auxilia na prevenção ao superendividamento, buscando evitar que pessoas em situação vulnerável se tornem superendividadas.
Por fim, a quarta proibição se refere ao condicionamento do atendimento dos desejos do consumidor à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais por parte do consumidor.
Em outras palavras, o consumidor não poderá ser levado a abrir mão de tais direitos para poder obter o crédito, sendo tal prática considerada ilícita diante da Lei do Superendividamento.
O descumprimento das regras que buscam a prevenção ao superendividamento pode gerar a redução dos juros, encargos ou acrésimos à dívida, a dilação do prazo de pagamento pelo consumidor e outras sanções administrativas ou penais ao fornecedor, sem prejuízo da indenização por perdas e danos patrimoniais e morais ao consumidor, se cabível na situação concreta.
Importante mencionar que, especialmente durante a pandemia de covid-19, as contratações pelo comércio eletrônico se tornaram muito mais frequentes.
Desse modo, não se pode esquecer que a Lei do Superendividamento não se aplica somente ao consumo presencial, como o feito nas muitas lojas de roupa por Becky Bloom, mas também ao ambiente virtual.
Lei do Superendividamento e a conciliação com os fornecedores
Além do Capítulo sobre prevenção ao superendividamento, a Lei 14.181/21 trouxe a novidade do Capítulo V ao Título III do Código de Defesa do Consumidor, referente à possibilidade de conciliação dos devedores com todos os credores, em um processo semelhante ao ocorrido em recuperações judiciais ou falências.
Com base nas novas normas, o consumidor considerado superendividado poderá requerer ao juízo a instauração de processo de repactuação de dívidas. Nesse processo, haverá audiência conciliatória com a presença de todos os credores de dívidas de consumo.
No âmbito de tal audiência, o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento das dívidas com prazo máximo de cinco anos. Parecido com os processos de falência e recuperação judicial, não é verdade?
Pois bem, em tal processo de repactuação das dívidas, estarão excluídas as oriundas de contratos celebrados com má-fé, como já afirmado, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural, ainda que sejam decorrentes de relações de consumo.
Importante mencionar que segundo a Lei do Superendividamento, caso qualquer credor não compareça à audiência de repactuação das dívidas, haverá a aplicação de certas penalidades.
Entre elas, a suspensão da exigibilidade do débito em relação ao credor faltante e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição obrigatória do credor ao plano de pagamento da dívida, caso o montante devido ao credor faltante seja certo e conhecido pelo consumidor.
Outra penalidade sofrida pelo credor que não comparece à audiência de conciliação para repactuação das dívidas é a estipulação de que o pagamento ao credor faltante somente poderá ocorrer após o pagamento aos credores presentes à audiência.
E o que deve constar no plano de pagamento das dívidas? A Lei do Superendividamento traz uma relação de elementos que deverão estar presentes em tal documento:
1) Deverão estar presentes as medidas de dilação de prazos de pagamento e de redução de encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, para facilitar o pagamento pelo devedor;
2) Deverá estar expressa a eventual suspensão ou extinção de ações judiciais em curso, à semelhança do que ocorre no regime de falência de uma sociedade empresarial;
3) Deverá haver a previsão da data a partir da qual o consumidor será excluído dos bancos de dados e de cadastros de inadimplentes e;
4) Deverá ser previsto o condicionamento dos efeitos do plano de pagamento à abstenção do consumidor de agir de forma a agravar sua situação de superendividamento.
Mas como assim?
Bem, isso significa que além dos fornecedores terem a obrigação de prevenir o superendividamento, o consumidor, quando estiver executando plano de pagamento das dívidas, deverá se abster de adquirir novas dívidas e piorar seu estado de superendividado.
Além disso, de acordo com a Lei do Superendividamento, o pedido do consumidor de instauração de processo conciliatório de repactuação das dívidas não importará na declaração de que o devedor está civilmente insolvente.
Por outro lado, os consumidores poderão repetir o pedido de processo conciliatório de repactuação das dívidas após decorrido o prazo de dois anos, contado da liquidação das obrigações determinadas pelo plano de pagamento das dívidas.
E se o processo de conciliação não tiver sucesso?
Calma! A nova lei também previu essa situação e trouxe as possíveis consequências.
Caso não haja sucesso na conciliação com todos os fornecedores, o juiz, a pedido do consumidor, poderá instaurar processo para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes.
Tal processo será levado a efeito por meio de plano judicial compulsório, procedendo o juiz, quando da instauração de tal processo, à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo eventualmente celebrado na conciliação anterior.
Ou seja, em não havendo sucesso na conciliação proposta pelo devedor com alguns ou todos os credores, o consumidor poderá pedir ao juiz que cite os credores que não concordaram com o plano de pagamentos proposto pelo devedor, para receberem o pagamento de seus créditos por meio de plano de pagamento proposto por administrador nomeado pelo juízo.
Tal administrador, por sua vez, deverá apresentar o plano de pagamento de dívidas em até trinta dias, contemplando medidas de atenuação dos encargos do devedor.
Referido plano compulsório de pagamento de dívidas deverá garantir aos credores pelo menos o valor principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, prevendo a liquidação total da dívida.
E quando os valores deverão ser pagos?
De acordo com a Lei do Superendividamento, o pagamento deverá ser realizado em no máximo cinco anos, como ocorre com o plano de pagamento consensual da primeira audiência de conciliação.
Além disso, a primeira parcela deverá ser paga pelo consumidor no prazo máximo de cento e oitenta dias contados da homologação judicial do plano compulsório de pagamento. O restante do saldo devido será pago em parcelas mensais iguais e sucessivas, conforme a lei em discussão.
Essas são as principais alterações e acréscimos ao Código de Defesa do Consumidor realizadas pela Lei do Superendividamento.
Como se percebe, se tratam de direitos muito importantes ao consumidor, que podem evitar situações de acúmulo de dívidas e superendividamento, prejudiciais à subsistência dos consumidores e à própria paz e tranquilidade desses sujeitos.
Afinal, estar superendividado a ponto de ser impossível pagar todas as dívidas sem prejudicar as condições básicas de vida é no mínimo angustiante, assim como fugir eternamente de um cobrador de dívidas furioso, como fez Becky Bloom escapando das formas mais criativas possíveis do cobrador Derek Smeath.
Fonte: https://www.jornalcontabil.com.br/